Moralismo capenga

Por Heloisa Maria Murgel Starling*

Combater a corrupção e derrotar o comunismo: esses eram os principais objetivos que fermentavam os discursos nos quartéis, às vésperas do golpe que derrubou o governo João Goulart, em março de 1964. A noção de corrupção dos militares sempre esteve identificada com uma desonestidade específica: o mau trato do dinheiro público. Reduzia-se a furto. Na perspectiva da caserna, corrupção era resultado dos vícios produzidos por uma vida política de baixa qualidade moral e vinha associada, às vésperas do golpe, ao comportamento viciado dos políticos diretamente vinculados ao regime nacional-desenvolvimentista.

Animado por essa lógica, tão logo iniciou seu governo, o marechal Castello Branco (1964-1967) prometeu dar ampla divulgação às provas de corrupção do regime anterior por meio de um livro branco da corrupção – promessa nunca cumprida, certamente porque seria preciso admitir o envolvimento de militares nos episódios relatados. Desde o início o regime militar fracassou no combate à corrupção, o que se deve em grande parte a uma visão estritamente moral da corrupção.

Essa redução do político ao que ele não é – a moral individual, a alternativa salvacionista – definiu o desastre da estratégia de combate à corrupção do regime militar brasileiro, ao mesmo tempo em que determinou o comportamento público de boa parte de seus principais líderes, preocupados em valorizar ao extremo algo chamado de decência pessoal.

Os resultados da moralidade privada dos generais foram insignificantes para a vida pública do país. O regime militar conviveu tanto com os corruptos, e com sua disposição de fazer parte do governo, quanto com a face mais exibida da corrupção, que compôs a lista dos grandes escândalos de ladroagem da ditadura. Entre muitos outros estão a operação Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), que ganhou concorrência suspeita para a exploração de madeira no Pará, e os desvios de verba na construção da ponte Rio–Niterói e da Rodovia Transamazônica. Castello Branco descobriu depressa que esconjurar a corrupção era fácil; prender corrupto era outra conversa: “o problema mais grave do Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar, punir e erradicar”.

A declaração de Castello foi feita meses depois de iniciados os trabalhos da Comissão Geral de Investigações. Projetada logo após o golpe, a CGI conduzia os Inquéritos Policiais-Militares que deveriam identificar o envolvimento dos acusados em atividades de subversão da ordem ou de corrupção. Com jurisdição em todo o território nacional, seus processos obedeciam a rito sumário e seus membros eram recrutados entre os oficiais radicais da Marinha e da Aeronáutica que buscavam utilizar a CGI para construir uma base de poder própria e paralela à Presidência da República.

O Ato Institucional n.º 5, editado em 13 de dezembro de 1968, deu início ao período mais violento e repressivo do regime ditatorial brasileiro – e, de quebra, ampliou o alcance dos mecanismos instituídos pelos militares para defender a moralidade pública. Uma nova CGI foi gerada no âmbito do Ministério da Justiça com a tarefa de realizar investigações e abrir inquéritos para fazer cumprir o estabelecido pelo Artigo 8º. do AI-5, em que o presidente da República passava a poder confiscar bens de “todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”.

Para agir contra a corrupção e dar conta da moralidade pública, os militares trabalharam tanto com a natureza ditatorial do regime como com a vantagem fornecida pela legislação punitiva. Deu em nada. Desde 1968 até 1978, quando foi extinta pelo general Geisel, a CGI mancou das duas pernas. Seus integrantes alimentaram a arrogante certeza de que podiam impedir qualquer forma de rapinagem do dinheiro público, através da mera intimidação, convocando os cidadãos tidos como larápios potenciais para esclarecimentos.

A CGI atribuiu-se ainda a megalomaníaca tarefa de transformar o combate à corrupção numa rede nacional, atuando ao mesmo tempo como um tribunal administrativo especial e como uma agência de investigação e informação. Acabou submergindo na própria mediocridade, enredada em uma área de atuação muito ampla que incluía investigar, por exemplo, o atraso dos salários das professoras municipais de São José do Mipibu, no Rio Grande do Norte; a compra de adubo superfaturado pela Secretaria de Agricultura de Minas Gerais e as acusações de irregularidades na Federação Baiana de Futebol. Entre 1968 e 1973 os integrantes da comissão produziram cerca de 1.153 processos. Desse conjunto, mil foram arquivados; 58 transformados em propostas de confisco de bens por enriquecimento ilícito, e 41 foram alvo de decreto presidencial.

Mas o fracasso do combate à corrupção não deve ser creditado exclusivamente aos desacertos da Comissão Geral de Investigações ou à recusa de membros da nova ordem política em pagar o preço da moralidade pública. A corrupção não poupou a ditadura militar brasileira porque estava representada na própria natureza desse regime. Estava inscrita em sua estrutura de poder e no princípio de funcionamento de seu governo. Numa ditadura onde a lei degradou em arbítrio e o corpo político foi esvaziado de seu significado público, não cabia regra capaz de impedir a desmedida: havia privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e excessos.

A corrupção se inscreve na natureza do regime militar também na sua associação com a tortura – o máximo de corrupção de nossa natureza humana. A prática da tortura política não foi fruto das ações incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatação reside o escândalo e a dor. A existência da tortura não surgiu na história desse regime nem como algo que escapou ao controle, nem como efeito não controlado de uma guerra que se desenrolou apenas nos porões da ditadura, em momentos restritos.

Ao se materializar sob a forma de política de Estado durante a ditadura, em especial entre 1969 e 1977, a tortura se tornou inseparável da corrupção. Uma se sustentava na outra. O regime militar elevou o torturador à condição de intocável: promoções convencionais, gratificações salariais e até recompensa pública foram garantidas aos integrantes do aparelho de repressão política. Caso exemplar: a concessão da Medalha do Pacificador ao delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979).

A corrupção garantiu a passagem da tortura quando esta precisou transbordar para outras áreas da atividade pública, de modo a obter cumplicidade e legitimar seus resultados. Para a tortura funcionar é preciso que na máquina judiciária existam aqueles que reconheçam como legais e verossímeis processos absurdos, confissões renegadas, laudos periciais mentirosos. Também é necessário encontrar gente disposta a fraudar autópsias, autos de corpo de delito e a receber presos marcados pela violência física. É preciso, ainda, descobrir empresários dispostos a fornecer dotações extra-orçamentárias para que a máquina de repressão política funcione com maior precisão e eficácia.

A corrupção quebra o princípio da confiança, o elo que permite ao cidadão se associar para interferir na vida de seu país, e ainda degrada o sentido do público. Por conta disso, nas ditaduras, a corrupção tem funcionalidade: serve para garantir a dissipação da vida pública. Nas democracias – e diante da República – seu efeito é outro: serve para dissolver os princípios políticos que sustentam as condições para o exercício da virtude do cidadão. O regime militar brasileiro fracassou no combate à corrupção por uma razão simples – só há um remédio contra a corrupção: mais democracia.

*Heloisa Maria Murgel Starling é professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais e co-autora de Corrupção: ensaios e críticas (Editora da UFMG, 2008) – Texto publicado em 23/09/2009 no site da Revista de História da Biblioteca Nacional.

Bibliografia:

FICO, Carlos. Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GASPARI, Elio. Coleção As Ilusões Armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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Democracia e combate à corrupção podem evitar novo golpe militar

Mais consciência política, fortalecimento da democracia participativa e o combate à corrupção são pontos chaves para evitar que ocorra, novamente, um golpe militar em nosso País, apontam estudiosos do tema e militantes políticos que viveram o período do regime militar.

A discussão é incentivada porque, nesta segunda-feira (31), em todo o País, ocorrem manifestaçõs e eventos para lembrar os 50 anos do Golpe Militar de 31 de março de 1964.

Para o professor aposentado do curso de História da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Aloísio Nogueira, deve ser intensificado o nível político da sociedade para que não tenhamos risco de um golpe militar nos dias atuais. “Hoje, infelizmente, há uma cooptação dos movimentos sociais pelo governo federal. Devemos fortalecer a sociedade civil para evitar um golpe e combater, sobretudo, uma maior exploração do capital”, opinou Nogueira.

Para a professora do curso do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Ufam, Selda Vale da Costa, conhecer os abusos e torturas que aconteceram durante a ditadura é essencial para que não se repitam os erros. “Assim evitaremos que a história não se repita. Também penso que seria importante que os meios de comunicação ajudem a informar melhor a população sobre este período”, avaliou.

De acordo com a professora, a juventude atual está muito apática às discussões políticas. “Todos estão muito pouco ativos, temos a impressão de que os jovens estão apenas consumindo as ideias que são projetadas por vários meios. Ou seja, alguém vai fazer por eles o que eles próprios deveriam fazer, como buscar informações e criar uma consciência própria. Me parece que há uma omissão muito grande”, criticou Selda.

O antropólogo Ademir Ramos opinou que o golpe militar é um ‘fantasma na América Latina’. “Toda as vezes que se perde a perspectiva no amanhã, busca-se algum porto seguro. E esta direita empresarial, além desta esquerda burra, acha que só um governo forte é capaz de dar seguridade ao grande investimento do capital”, avaliou o antropólogo.

O combate à corrupção e o fortalecimento das instituições políticas são apontados pelo advogado e jornalista Paulo Figueiredo como soluções. “Para evitar um novo golpe militar, temos que encarar o regime democrático com responsabilidade, porque temos, hoje, uma classe política no Brasil que não se dá o respeito. A corrupção é, hoje, a maior ameaça à construção de um País democrata e de instituições sólidas. Há hoje, no País, uma relação extremamente promíscua no seio da classe política que, na minha opinião, corrói o sistema representativo. Com a falência das instituições democráticas, tem-se a oportunidade de aventuras golpistas que podem, concretamente, ameaçar a existência e consolidação do regime democrático”, disse.

Erros da ditadura são repetidos hoje, diz dirigente

O presidente do Comitê Estadual de Direito à Verdade, Memória e Justiça do Amazonas, Egydio Schwade, afirmou que erros cometidos durante o regime militar no Estado estão sendo repetidos no regime democrático. “Em relação aos povos indígenas, por exemplo, ainda estamos passando estradas por terras de povos indígenas e construindo hidrelétricas inudando, terras sem respeito nenhum, como se tudo fosse um vazio geográfico, como falavam  os militares. Tinha aquele slogan: ‘Vamos dar a terra sem homem ao homem sem terra’, o que não era verdade, pois tinha os indígenas ali. Tudo isto é muito grave”, opinou o indigenista Egydio.

Scwade ainda teceu críticas à Comissão Nacional da Verdade que, segundo ele, se limitou aos casos de mortes e torturas de militantes de esquerda ocorridos em outras regiões do país. “Infelizmente, a região amazônica e as mortes dos indígenas são fatos que estão sendo esquecidos pela Comissão Nacional. Creio que o motivo são os grandes eventos, como a Guerrilha do Araguaia. Mas eu acredito que o que aconteceu aqui foi muito mais grave e a sociedade, em todas as regiões do Brasil, ainda não se seu conta deste acontecimento”, avaliou.

O Comitê Estadual da Verdade, Memória e Justiça no Amazonas entregou, em outubro de 2012, um relatório sobre o massacre de 2 mil indígenas da etnia Wamiri-Atroari à Comissão Nacional da Verdade.

O relatório foi resultado de pesquisas de Schwade e descreve como ocorreram os assassinatos de pessoas e de aldeias inteiras do povo Waimiri-Atroari, nos quais estiveram envolvidos agentes das Forças Armadas do Amazonas e Funai, durante a construção de um trecho da BR-174 e da hidrelétrica de Balbina. Na época, Schwade participava na alfabetização dos índios Wamiri-Atroari.

Fonte: Portal D24

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