Nunca antes na história do Brasil fomos todos tão iguais perante a lei. O preceito está gravado na Constituição desde 1988, mas apenas nos últimos tempos saiu do papel e ganhou as ruas.
A igualdade, importante frisar, alimenta nosso sonho de justiça. É o que nos dá a sensação de sermos cidadãos respeitados e valorizados, propiciando condições para o real desenvolvimento de um povo. A igualdade é a fiadora máxima do sistema democrático.
Como classificar, neste contexto, uma proposta que tivesse como objetivo ressaltar as nossas diferenças? Nesta semana, esta Folha informou que parlamentares pretendem apresentar uma proposta de emenda à Constituição para estender a ex-presidentes da República o privilégio do foro especial por prerrogativa de função, determinando que só sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal. O que dizer a respeito? No mínimo, que é um tapa na cara do povo.
Ninguém pode pretender estar acima da lei na democracia. Ninguém pode querer ser intocável. É antiético, imoral, injusto. Na Espanha, na Suíça, na Holanda e nos Estados Unidos, para ficarmos em alguns poucos exemplos, não existe foro privilegiado. Em Portugal, exige-se apenas uma autorização legislativa para o processo.
Na Itália, há o foro privilegiado exclusivamente para o presidente da República. No Brasil, entretanto, até mesmo prefeitos de micromunicípios desfrutam de tratamento especial do Poder Judiciário.
Nossa Constituição determina que processos envolvendo autoridades sejam encaminhados para órgãos superiores, como o Supremo.
O instituto do foro privilegiado nasceu em um Brasil no qual mulheres e pobres não votavam. Surgiu num país cheio de preconceitos e de reservas de poder. Só homens ricos tinham direitos e, assim, decidiam os destinos da nação.
Por meio da Carta de 1891, o presidente da República e seus ministros, os magistrados do Supremo Tribunal Federal e os juízes federais foram agraciados com o foro especial em matéria criminal. Isso foi decidido na República Velha (1889-1930). Não queremos um Brasil novo?
Passados 125 anos, ainda sofremos com a falta de acesso à Justiça, com as desiguais oportunidades econômicas e sociais e com uma impunidade epidêmica. Há mais de 28 anos, contudo, vivemos sob a vigência de uma Carta Republicana que consagrou direitos fundamentais, especialmente os relacionados às diversas liberdades e à isonomia, que nos servem de instrumentos para enfrentar as desigualdades.
Cada vez mais, apesar da resistência patética e do esperneio vão e desesperado daqueles que não querem abrir mão de suas anacrônicas benesses, percebemos e acreditamos que privilegiar indevidamente autoridades ofende o senso mais elementar de justiça. Desrespeita a cada um de nós e ao conjunto de princípios de nossa república democrática.
O foro privilegiado subverte princípios processuais fundamentais e a própria organização do sistema de justiça. Tribunais são estruturas concebidas para reapreciar causas, e não para colher provas e instruir processos. Certamente a morosidade decorrente desta sobrecarga de trabalho aumenta muito o risco da expectativa social de punição ser fulminada pela prescrição. Junto a isso vem o amargo sabor da impunidade.
O argumento de que políticos só devem ser julgados pelo Supremo por conta da maior vulnerabilidade dos juízes de primeiro grau poderia ser válido nos tempos mais bicudos do coronelismo, mas é frágil e insustentável nos dias de hoje, em que a independência judicial é uma conquista e não mais um sonho distante. O juiz federal Sergio Moro é um bom exemplo.
Mais do que refutar a inaceitável expansão do privilégio processual, deveríamos aproveitar a oportunidade para extingui-lo de vez. É hora de abolir esses esconderijos tortuosos, fétidos e sombrios, negadores da igualdade de todos perante a lei.
ROBERTO LIVIANU, doutor em direito pela USP, é promotor de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção